segunda-feira, dezembro 19, 2005

Oh! querida, relembre.


Querida, tenho uma compreensão bastante diferente da que você acaba de relatar. Não considero um engano passagens que nos são tão valiosas, mesmo que elas não correspondam aos anseios de nosso egoísmo, de nossa avidez. Respeitei o silêncio que se seguiu após alguns desencontros que, de alguma maneira, nos abateram, repetindo um ciclo de nossos íntimos fracassos. Diferentemente de você, creio, e insisto, na validade de nossa vivência e no que há de mais sagrado na obtenção que nos foi proporcionada. Lamento que você apenas lamente e se encha de orgulho ao constatar uma suposta farsa, sentimento que se alinha, repetidamente, em suas ações. Seja qual for seu julgamento sempre respeitarei o bem que me trás sua lembrança. Eu, como artista que sou, que sei que sou, que nunca poderei negar que sou, reitero, ratifico e corroboro todas as artes que te dediquei, mesmo ainda mantendo-as em meu atelier. Como artista, como amante, como prescutador da beleza embutida nos recônditos de seres incondicionais que temos o privilégio e a oportunidade de nos relacionarmos, entendo e apoio o sentido das palavras que você me dirigi hoje. Entranhado nas lembranças que ainda tenho do muito que vivemos, você e eu, está a certeza de que fui, sou e serei sempre um fiel e dedicado amigo. Nada há de lamentável em nós, muito diferentemente dessa afirmação, quando penso ou sinto que existimos, me ilumino.
"Querido, não tenho mais seu telefone, mas tenho o e-mail no computador do trabalho. Assim vou dizer por e-mail que enganos cometemos, mas felizmente nos recuperamos, mesmo de experiências profundamente dolorosas de separações ou de saúde,como foi o meu caso. O que eu não queria deixar de dizer é que na fragilidade confiei em um amigo que penso hoje ser uma tremenda farsa. Ninguém, nem um artista, consegue enganar a todos por todo o tempo. Lamentável.
Querida, pelo que você diz, sem levar em conta as palavras de lingüista, capaz, que você é, parece-me que deixei de fazer algo que me escapa. Gosto de discursar sobre pessoas e coisas, isso é inerente a mim. Sei que não sou bom para compreender anseios, desejos ou retribuir nuances, mas sei também que realizo coisas concretas. No tocante ao trabalho que realizo, construí várias obras especialmente para você: esculturas em mármore, uma em apresentação nos novos trabalhos nos EUA, uma exposiçao com seleção de peças só suas em evento em Tóquio, uma grande peça em vidro produzida sob o calor de 40C do verão europeu na boca dos fornos da mais tradicional manufatura de vidro de Murano, ilha vizinha à Veneza, você sabe, esteve lá e disse: "formosa Itália". Uma grande tela pintada em acrílica, imitando o inimitável Otávio Araujo (um atrevimento), com motivos da renascença para evocar forças para sua proteção, uma coleção de técnicas mistas, gravuras em metal no estilo maneira negra - bem a seu gosto - as quais lhe ofertei e que com gosto apaixonado lhe ofereci fazendo cena e circunstância certa vez em sua casa, uma série de textos rotativos e minimalistas, muitos pensamentos, alguns colóquios fantásticos entre nós e, infelismente, ouvidos só por mim, e mais alguns objetos metafísicos sem grande importância cósmica, algumas explicações sobre galaxias distantes e de como a poeira das estrelas são importantes na construção do planeta. Feito um mestre vidreiro da Venini, produzi para seu deleite luminárias, lustres, candelabros e castiçais de cristais com a técnica do sopro.Tudo isso guardei e olhando, assim, daqui onde estou sentado, não me parecem apenas discursos. Talves, dentro de uma verdade, você não dê valor para essas coisas, portanto não sei sobre o que você está falando. Mesmo assim vou sempre te querer bem. Aprendi a te conhecer. Pode ser que nunca mais nos falemos ou vejamos, mas o que conta é aquilo, muitas vezes insondável, que sentimos. Ainda há um grande caminho pela frente e não podemos nos antecipar em nossas terrenas e apressadas conclusões, e você, se me permite, tem que saber o mais rápido possível que as pessoas não querem tirar algo que é seu, ninguém conseguira fazer isso, fique tranqüila. Sei que se preocupa, sobremaneira, em ser lesada pelos que a cercam e isso é apenas uma fantasia sua, pois a interferência de seu pai no decorrer de toda a sua vida a estragou, confundiu, minimizou seus valores próprios. Sei que é, e já presenciei, uma pessoa bondosa. Aceite essa sua qualidade, inata, sem rodeios e dirija esse DOM a você mesma. Como diz você: "Melhor assim".
"Querido,não há necessidade e nem desejo de trocar telefones. Não temos que nos falar mais. Infelizmente, como lingüista sei o que é um discurso e o seu é bom. Pela segunda vez em nossos encontros pela vida,você só discursou. Então deixa assim como está. Melhor assim".
I - Vejo que você acredita que eu tenha, em algum momento, faltado com a verdade. Sua bondade é cega, digna, mas inculta e quando dirigida a si própria, ineficaz. Uma bondade de mãe ilusionista, prestidigitadora de seus próprios sentidos. Você me atribui pronome indefinido de pessoas, sou apenas um, um único, um primeiro, Querida, e você sabe. Meu rastro é feito em miríades e entrelaces repletos de incongruências e você, Querida, só consegue constatar dois deles repletos de indignações, os dois mais simples. Refleti um pouco sobre essas suas palavras e constatei que há um pouco de ódio indômito por entre os espaços arejados dos significados que representam. Preste a atenção, Querida: A passagem que menciono traz um hino de louvor entoado por quatro "seres viventes" e por vinte e quatro anciãos, chamado no contexto de "um cântico novo", expressão freqüente nos Salmos. Tanto nos Salmos quanto no Apocalipse, trata-se de um hino que canta novas e gloriosas manifestações da benignidade divina, ou seja, bondade, beneficência e delicadeza, tudo aquilo que você possui naturalmente sem que se tenha dado conta ou perdido pelo caminho de seus desencontros. Suas preocupações a envolvem, mas observe-se o Salmo 33.3: "Cantai-lhe um cântico novo. Tocai bem e com júbilo". Isso lhe fará ver. Estou falando de arte, do sublime, do que é feito sem alarde por mim, e por que não, por você, Querida. Por sua vez, no Salmo 40, Deus livrou o salmista de um terrível poço e de argila pantanosa e pôs em seus lábios um novo cântico para louvar a Deus. Isso é bondade, sua verdadeira bondade, Querida. Aquela para com sigo própria e que deve, sem sombras de dúvidas, espraiar-se, derramar-se para todos os lados, inclusive o meu. Sei que eu pouco importo. Sei, por suas poucas palavras que tanto faz. Sei, também, que não compartilho do que demonstra estar sentindo agora. Não compreendo, e você sabe que não compreendo. Então porque insiste em desabafar? Deveria aproveitar o que eu tenho de melhor para você e, através de sua bondade, me perdoar por aquilo que penso não ter cometido.
II-Você sempre foi uma mulher formosa, fonte de riqueza e felicidade para os olhos que a tiveram. Mulher cornucópia, sinuosa, um grande vaso em forma de chifre, gracioso e instigante, com frutas e flores que dele extravasam profusamente. Mulher portadora, em seu sorriso, de antigos símbolos da fertilidade. Mulher que carrega consigo gestos de riqueza e abundância. Ao refletir sobre essa sua condição, e me lembrar de que você chama minhas reflexões de "seu discurso é mesmo bom" (com pequena doze de sarcasmo), me coloco, admirando, diante de alguns rabiscos que fiz para você e percebo que aspectos prosaicos constrangem e limitam determinados sentimentos. Algumas cores, ou até conjuntos delas, apresentam-se sem sublimidade quando me deixo tocar por suas palavras más. Me coloco em ângulos diferentes, esperançoso, com confiança em coisas boas, apago e acendo luzes para que suas tonalidades tenham outros relevos e assemelho-me a fé, me agito, espero que algo se avive, se insinue. Concluo que essas obras são verdadeiramente suas: indecifráveis, mesmo para mim que as possibilitei. Como alguém pode insuflar idéias, sentimentos, propósitos artísticos em um determinado momento e desfazer todas essas possibilidades logo a seguir. Sim, Querida, tudo se refaz por meio de um sopro.
"Querido, não, pela vida, você só discursou. Então deixa assim como está. Melhor assim".
III-Minha arte não, mas a literatura sim, me possibilita achar o fio de sua magoa. Então, gostaria que me perdoasse pela indignidade. Que me perdoasse por ter sido cruel através de minha distração. Que me perdoasse por ter formulado inverdades nas ações praticadas, mas desconhecidas, nesse imenso contexto onde transitam fluentemente todas as possibilidades de uma ópera.Caso não venha me perdoar e de qualquer maneira, ou conseqüência, quero deixar crível sua existência mítica em meu fazer diário; seu trânsito fabuloso por entre minhas formas e cores; suas legendárias palavras em meu cérebro; seus excessivos silêncios em meus vasos circulatórios; seu ato heróico de viver, infestado de cosmogonia.
"A bondade para comigo mesma inclui perceber quando as pessoas não falam a verdade. E foi este rastro que você deixou por duas vezes. Isto me causa indignação. Desabafei pela bondade que tenho por mim mesma. Era só isto que eu queria. Seu discurso é mesmo bom".

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Este texto é tocante...

"M"

7:07 PM  

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