terça-feira, janeiro 10, 2006

A distância transponível
















Um Leigo caminha, usando os pés, em busca de sua própria Santidade

SAPIENCIAL
“Sei que você aproveita, aprecia, estima bem o seu dia. Sei que tem gravada, na testa, luminosa estrela de imaginar o futuro que, na glória e bem-aventurança, há de vir. Padece de magia e de solidão quando, confiante, usa a cabeça e as mãos para retornar, verdadeiramente, ao real. Você, de fato, é uma imensidão que sonha, que olha, que reverbera em graça iluminando mundos futuros através de seus engenhos e cabriolés – esta é a sua natureza inescapável, esta é sua maneira. Seu papel, nesse memorável palco, é o de distribuir idéias e colher conhecimento para que a repetição cósmica das horas, gravada com destaque em pergaminhos um tanto puídos e roçados de todos os destinos, cruzem, de um modo ou de outro, seu caminho e, em sendo assim, você segue indefinidamente, ininterruptamente. Você sabe que, por circunstâncias alheias à sua vontade, alguém, sempre, terá a ousadia em aventurar-se à impedi-lo. Segue o caminho certo com o passo esquerdo logo após o direito. Tenha sempre à mão os mapas das superfícies planas inscritos em suas remotas e anuviadas lembranças, como um instrumento antigo, com o qual ainda tenta medir a altura do pé em relação as distâncias dos astros acima do horizonte. Você não rola, somente caminha. Vai para a frente, progride, avança, adianta-se.
Ah, seu pé, um esquerdo outro direito, antes, nos primórdios ele permitia descobrir a distância que ia do ponto de partida até ao lugar onde todo o seu corpo se encontrava. Descobria-se a aventura aos poucos, lentamente, medindo a altura atingida pela sola até a cota zero do chão. Muitas vezes, ao sol do meio dia, podia-se saber quanto media a quarta parte de uma esfera. E o tempo? Como era isso possível se não havia relógio e os maquinismos formados por discos que giram em torno de eixos ainda escapavam as mentes? Era sim, pois mediam o tempo com ampulhetas, mas com resultados pouco rigorosos. Era vantajoso em relação ao quadrante, não só porque era mais fácil trabalhar à luz do dia, como pelo fato de a Estrela Polar não ser visível no hemisfério sul. E com seu destino, quem se importa?

Tomo primeiro - CIRCULAÇÃO
Dia claro, 5h20. A névoa esparsa me desiludi queria que estivesse chovendo. Olhando fixo para o chão, pois conheço de cor a caminho a seguir - “o pé humano é composto de 26 ossos” - penso em como seria bom a chuva para andar. Adoro o meu trabalho, sinto-me, de verdade, um criador, gostaria de escrever sobre Tálus, Calcâneo e Cubóide, pequenos deuses em todo o seu esplendor, para mim, ser um homem capaz de criar coisas a partir do nada, com a ajuda de meu “Dom” e de “Meu Deus” é infinitamente compensador - “sei que os ossos dos pés são mantidos unidos através dos ligamentos, que se totalizam em um número de 107, formando as articulações” - sigo agora resfolegante, a subida é puxada, minhas narinas ardem ao puxar o ar - “os movimentos do pé são realizados pelos músculos” - assim me divirto.
As vezes plano sobre a terra e enxergo tudo muito bem; as vezes viajo pelas galáxias sem entender absolutamente nada - “o sangue que irriga os pés percorre uma longa rota arterial” - tenho que virar a esquerda, os carros são donos das calçadas. Em determinado momento, compreendo o significado dos infinitos mundos a milhões de anos-luz fungando ritmados; as vezes fico magoado e temeroso ao perceber a brevidade e a fragilidade de humanos como eu. De uma certa maneira é bastante insano todos esse carros se empurrado - “após suprir a região com oxigênio e nutrientes, ele, o sangue, volta por veias ao coração, levando produtos residuais” - caminho muito, todos os dias, e olho em volta, fico encantado e, quase simultaneamente, desmoronado. Quero amar, mas na maioria das vezes esqueço por completo o meu Dom e dou com o dedo anular.

Tomo segundo - INERVAÇÃO
Gostaria de trabalhar só com arte porque ela flui infinitamente sem bloqueios, sem conceitos, sem projetos - o suprimento arterial do pé é fornecido principalmente pela artéria tibial posterior e tibial anterior” - mas, um dia, na luz do universo, alguém me disse: “Olhe, escolha um ponto de dor lá em baixo e vá, faça o melhor para que compreendam, para que sintam. Vá, caminhe pelo vácuo até firmar os pés, sinta as diferenças do tempo e inunde os olhares com o Dom que te é de graça”. Emocionado aceitei sem demora, sem confabular porque quem ama não confabula. Mas ao abrir os olhos para tal claridade, vi que também deveria sentir a dor como a que sentiam os que me rodeavam, pois, eles, do mais humilde ao mais suntuoso, um dia também se convenceram a vir. No fundo sabemos que somos todos idênticos.
Não sei por qual razão temos que aliviar tal dor. Sorrindo, respirando, tocando instrumento. Um toca, outro bebe, um ama, outro mata. É incongruente, mas sempre em velocidade vertiginosa. Vamos viver cada vida, uma delas para cada vez, assim como sei que um dia todos prometemos. Uns trazem a luz e o encantamento, outros a palavra, outros apenas a observação. É difícil cumprir tarefa de amar, assim como prometemos que sempre seria. Mas nos perdemos um pouco na incredulidade.

Tomo terceiro - HEAUTOGNOS
Deixamos como que para amanhã ou para daqui até a próxima vez.
Foi assim que nos imbuímos enquanto chorávamos na viagem de chegada. Foi assim como, extasiados, nos perdemos, inventamos a roda e aprendemos a deixarmos, sempre, para depois.
PROJETO NO OLHO DA RUA ARTE EM TRÂNSITO
Luiz Carlos Rufo - 1956
Artista multimeios, trabalha em arte e literatura desde 1970. Finaliza e destina algumas de suas obras em formato de coleções, ou livros de baixa tiragem, usando recursos de mídias diversas para a interação e apreciação popular.
Os textos apresentados neste projeto são objetos de reflexão do autor entusiasmado pela atividade de observar questões alarmantes inerentes aos meios de locomoção adotados por nossa sociedade, onde o jogo de aparência dita as regras e o lucro as normaliza.
©VIA/LGDM/RUFO