sábado, fevereiro 25, 2006

"Fragmentos do artista: Douglas Norris"




Sob o manto de emoção ímpar fomos recebidos por Douglas Norris no portão de seu impenetrável (pelo menos para os comuns dos mortais) atelier, chamado por ele de “necrotério”. Nada mais inadequado, pois seus olhos azuis, que flutuam sob a luz emitida pela vasta barba branca que lhe emoldura os mais 80 anos, estão repletos de muita vida. Ouvimos suas histórias com muita atenção para bem aproveitar tão rara oportunidade. Vimos muitos desenhos, esculturas, gravuras, tanto dele como de outros importantes artistas, como “Bonadeis” e “Raphael Galvezes”, de seu acervo particular, para citar dois importantes contemporâneos, presentes em seu depoimento e espalhados por sua sala. O fato de presenciarmos tamanha vitalidade em Douglas nos fez constatar, e vivenciar, que em seu “necrotério” só existem coisas especiais e muito vivas, como ele próprio demonstrou ao relatar, visivelmente emocionado, o busto de “Douglas Norris” esculpido em bronze pelo importante artista, e amigo e mestre, Raphael Galvez. (Raphael Galvez - São Paulo, 1907/1998).

Acompanhe trechos da fala desse maravilhoso artista brasileiro na “ÁRVORE 6.3.7”:

“Há muito tempo guardo em minha lembrança um amigo. É muito difícil falar sobre o Raphael Galvez, que não só me ensinou a pintar como também a cultivar o caráter de um homem de artes. Devo muito a ele. Quando ele fazia uma pintura era como se eu mesmo a tivesse feito; quando eu trabalhava em um desenho era como se fosse dele, tamanha nossa integração. E assim foi a vida toda, uma coisa muito bonita, muito pitoresca. Éramos uma mesma alma, sinto muito sua falta”.
“Há cinqüenta anos passados um amigo meu perguntou-me se gostaria de conhecer um grande artista.O encontro se deu na maravilhosa região que era o Vale do Anhangabaú. Começamos a conversar. Perguntou-me de pronto se gostava realmente de pintura, daí iniciou-se nossa grande amizade. Foi Raphael quem me deu o primeiro papelão para pintar e cujo resultado guardo até hoje. Certa vez apresentei-lhe uns trezentos desenhos, ele olhou apenas dois e disse que já havia visto todos. Intrigado perguntei o porquê dele excluir tantos outros e qual a razão para não olhá-los. Sua explicação foi a de que ‘A vida é um momento, toda hora é um momento, ela muda sempre e quando você me trouxe todos esses desenhos trouxe-me uma coisa só. Vendo estes dois já conheço todos’. Diante disso só me restou desenhar ainda mais. Achei isso formidável!”
“Uma injustiça grande quando falam dos artistas do passado e não citam o Raphael Galvez”.
“Eu fui atleta da luta livre. Quando as pessoas me viam desenhando zombavam dizendo ‘Como? Um lutador desenhando e pintando?’ Um dos meus amigos quando descobriu que eu era pintor quase morreu de tanto rir.”
“Só fiz duas exposições na minha vida: uma para Zuleica, minha esposa, e Igor, meu filho. A outra foi para o meu grande mestre e amigo Raphael Galvez. Embora tivesse chance de fazer outras, não quis. Preferi me recolher, fui desenhar, pintar, uma luta danada. Muitas vezes pegava o meu cavalete e saia ali do Paraíso e ia até o Eldorado para ficar ao sol desenhando, pintando naquela região que era realmente uma beleza. Já passei até fome para poder comprar material. Sem tormento não existe arte.”
“Tenho mais de 80 anos e não fiz nada ainda. Estou engatinhando. Escrevo e desenho muito. Tenho que deixar registrado alguma coisa, conheço muito da alma humana”.
“Aconteceu na favela uma passagem muito bonita na minha vida. Eu estava pintando, fazendo uma panorâmica da favela Vergueiro, já estava ali há muito tempo, quando escutei passos. Percebi um vulto que parou um pouco atrás de mim e uma mão negra depositou bananas ao meu lado e afastou-se sem dizer palavra. Senti que ainda havia humanidade, alguém desconhecido se preocupou com meu bem estar”.
“Perto do Rio Tietê, retratei uma garotinha de nome ‘Ondina’. Um rapaz, de pouca fala, ficava nos observando, o convidei para ser retratado. Um dia a bonequinha da menina caiu dentro do rio e o rapaz, mesmo vestido, pulou dentro do rio para salvá-la. Voltei lá diversas vezes para desenhar, descobri que aquele rapaz era bandido. Ondina me deixou a boneca de presente e o rapaz, seu isqueiro. A arte muda tudo.”
“Bonadei (Aldo Cláudio Felipe Bonadei - São Paulo 1906 / 1974) pessoa muito modesta, viu um dos meus desenhos e o pediu emprestado. Fui até sua casa para buscar o tal desenho, mas ele não devolveu argumentando que agora o desenho passara a ser dele. Insisti que queria o desenho de volta, ele sugeriu uma troca: um quadro dele em troca do meu desenho. Vi a pintura de uma ponte e a escolhi, uma pintura muito espontânea”.
“Hoje minha esposa pergunta o que vai ser das obras mais tarde, mas eu digo para ela não se preocupar com isto agora. A sabedoria é a coisa mais importante da vida mas não é tudo, a sensibilidade caminha junto com a sabedoria.”



3 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Ah! o bom vinho da arte. Único para quem o sorve. Há que se ter, de fato, humildade e sabedoria. Nós, os menos afortunados, os saldamos por este momento e por toda uma vida dedicada. Muito Obrigado !

12:33 PM  
Anonymous Anônimo said...

Douglas e Zuleica
Esta maravilhosa a pagina.
achei criativa.Os seu trabalho como sempre estão bonitos.
Douglas continua assim.
Quero mais trabalhos.

Um abraço do seu amigo Euclydes Filho.
(filho do Belo)

6:50 AM  
Anonymous Anônimo said...

Doulas,sou teu fã desde os 10 anos de idade, quando você jà pintava a bico de pena as historia em quadrinho iguais as do Suplemento Juvenil.
O tempo passwou e eu continuo sendo seu fã na Arte da Pintura, por favor nâo abandone, continue pintando, do amigo Euclydes o (Belo)

7:31 AM  

Postar um comentário

<< Home